sábado, 28 de julho de 2012

atos

Metade do caminho é dado, assim, de supetão. Não se pede nem se espera e, possivelmente, não se está preparado. Mas vem e quanto à isso não há remédio. Deve-se apenas aceitar, no pior dos modos ou no melhor dos jeitos e reclamar sem sossego ou aclamar sem tédio ou destituir sem medo, construir com apego quem sabe até ignorar. Mas que algo deve ser feito, ah! deve ser feito. Nem que seja chorar e fugir. Correr num desespero quase crônico, doentio. ou se entregar sem medo. Abrir a janela do quarto escuro e deixar um pouco de luz entrar de vez em quando, mesmo que machuque os olhos, mesmo que queime a pele, que revele o desconhecido que tanto se teme, a bagunça do quarto. Mesmo que desapegue o sossego, mesmo que desmascare o que foi realidade, há de ser, em algum ponto, bom.
  Mesmo que atravesse o Eu, tão dificilmente formado e o parta, deforme. Deixa que tudo se transforma. Deixa que tudo vai como deve ir. Não apressa, mas também não foge. Tô cansado de não viver, você deve estar também. Foram alguns bons anos de muitas fugas premeditadas e agora tamos aí, meio que sem saber existir de verdade no que é de verdade. Levanta a mão umas três vezes e promete que não vai sair correndo quando as coisas complicarem um  pouquinho ?
 Sim eu sei que é difícil. Sinto muita vontade de sair correndo também. O tempo todo. Mesmo. Mas a gente tem que se controlar nesse pouquinho de existência, fingir que a gente sabe viver um pouco melhor do que a gente sabe de verdade. Se decepcionar mais. Voltar a sonhar. Só pra manter a sanidade mental, só para ter certeza que ainda temos coragem de errar, de quebrar a cara. Essa é a outra metade do caminho, né. A gente não pode ficar andando só metade pro resto da vida. Uma hora a gente tem que ter coragem de sair abrindo todas essas portas emperradas, nem que seja na base da porrada, nem que a gente tenha que ficar horas esmurrando a porta para ela abrir ou batendo desesperadamente enquanto chove do lado de fora até que alguém a abra, assustado com um sorriso. Mesmo que essa porta nunca se abra e você fique desesperado não querendo nenhuma porta além daquela que não abre. Mesmo que não veja mais caminho possível. A gente só não pode dar ao luxo de não fazer nada igual estávamos fazendo. Principalmente eu. Eu e minha loucura incessante, minha paranoia, minha vontade louca de inexistência... Não fica parada aí, vamos dar uma volta no lago, acampar, correr. Não fica parada aí e não me deixa parado aqui, porque tá começando a cansar as pernas essa coisa toda de não fazer nada nunca.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

responsabilidades

O trabalho é sempre corrido.  Desesperador vai-e-vem desde as oito horas da manhã. O telefone toca insensível, incessante. Não da para relaxar. Ainda não foi ensinado como se pára o mundo, só por um ou dois segundos, só para dar um suspiro mais  demorado, outro trago no cigarro, outro beijo e mais um tchau.
 Nem se da tempo para o "eu te amo" sair menos engasgado, pro "eu também" ser ouvido. Fica tudo muito imaginado num ritual onde o " 'brigado', bom dia." vem numa palavra só e você já sumiu e é o "próximo" que assume seu lugar numa correria louca.
 E tudo isso porque são oito e dez da manhã e você tem a impressão que já trabalhou todos os singelos oito turnos semanais contando as reuniões e tudo mais. Na verdade se passaram dez minutos. Ferozes como se fossem dez anos ou mais e você perplexo com a quantidade de vozes tão diferentes mas aceleradamente tão iguais que você escutou nos últimos quarenta e cinco segundos. E ainda é segunda feira e faz apenas duas horas que você está de pé, ainda com o gosto do café na boca e o cheiro de domingo no cabelo. Um sorriso de canto de rosto se der tempo lembrando daquele momento mais romântico na porta de casa. Milésimos de segundo perdidos pensando no dia anterior e você já está atrasado. Acabou a hora do almoço e a correria (que nunca parou) recomeça. Se é que é possível recomeçar algo que nunca pára. E o fim de semana vai chegar e o fim de semana vai embora. Milhões de pessoas vão ir e vir e vir e vir e vir. E ainda são oito e quinze da manhã. E ainda é segunda-feira.

estranho encontro

Era só um homem, como esses que a gente vê todo dia nas rodoviárias da vida. Com seu uniforme de trabalho, a tradicional camisa branca calça azul sapato, esteja o tempo que estiver e faça o calor que fizer.
 Estava sentado, ele seu caderno e caneta. "Deve estar fazendo contas" - pensei. Sempre nessa ideia de como é corrida a vida e como as pessoas estão sempre ocupadas demais para ter um hobby. Passei por ele como quem nada queria, buscando apenas um quê de escrever. Acontece que o mesmo não fazia contas. Havia encontrado um pouco de si no si mesmo e um pouco de tempo para sonhar. Desenhava! Sim, D E S E N H A V A. Como fazem as pessoas que descobrem um tempo para cuidarem de si. Havia um tigre no papel, com sua presa já abocanhada. E logo me vi tigre, abocanhando minha presa, com pressa e sem dó. Fazendo do papel minhas garras e a boca de caneta. Dilacerei cada pedaço daquele compositor de feras e compuz cada pedaço desse  domador de palavras. Construí ali, junto daquele homem que, dentro do seu lazer nem me percebeu, meu jantar. Hoje como arte com textura e digiro pensamento. Logo ele é atrapalhado. Fico atento a seus movimentos, ele sorri, há um brincadeira, a distração se vai. Ele volta ao papel mas já não tem mais a mesma precisão. Algo se foi junto com aquela pessoa que passou por alguns segundos. Levanta, guarda seu bloco no bolso e vai.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

amor adolescente

                                                             
Gritavam, xingavam. Era um alvoroço. Duas feras incompreensíveis, cada uma de seu lado. Dois lobos grunindo raivosamente, logo após dois ursos distribuindo patadas, dois pássaros amedrontados, dois cachorros ladrando, chorando, abanando o rabo... Um caleidoscópio de feras e formas, de dores e amores. De um lado o medo do desconhecido, de outro o medo do que não quer que se descubra. Muita tensão e no meio de tudo isso, por trás de todas as feras e todas as formas duas crianças tentando fazer da melhor forma que sabiam aquilo que todos nós fazemos o tempo todo todos os dias : existindo.
 Queriam ser notados. Queriam ser queridos, queriam ser importantes. Um para o outro e cada qual com todo o resto. Queriam o carinho, a apreensão. Aquele grito materno impedindo que se caia do penhasco. Esses eram os dois enquanto berravam um com o outro. Esses eram enquanto se batiam, duas criaturas ensandecidas, ferozes, esbravejando e em seus gritos suplicando um pouco de atenção, um pouco de carinho. Não era fácil compreender que no meio de tantos tapas, socos e ofensas havia amor e muito amor e os dois sabiam e por isso ficavam mal quando gritavam, ficavam mal quando recebiam os gritos e ficavam ainda piores se ficassem em silêncio. Por isso tiveram que se bater, se empurrar, se ameaçar. Porque se amavam e não sabiam mais como fazê-lo. Porque tinham medo de não serem mais percebidos. Porque queriam ser percebidos. Queriam seu amor público mas não sabiam mais como fazê-lo, então o destruíram. Da forma mais pública possível. E se arrependeram. A exposição do amor o destruiu, o desmistificou. O que era particular se tornou público. Esvaiu no grito, esvaiu no tapa e o que era sorriso se tornou vertigem, falha, medo. E os dois que chegaram juntos foram um para cada lado. Com um remorso no peito e a certeza de que aquele não seria o último momento de nenhum dos dois.

domingo, 22 de julho de 2012

memórias


Abrupta, incompreensível. Vem como uma onda, varrendo de fora a fora, deixando tudo desigual mas estranhamente reconhecível. Em algum lugar deste cenário perplexo e repentino existe um pouco do que era meu e muito que ainda pode ser. A porta estava entreaberta, com uma luz baixa pouco convidativa mas não pensei muito. Empurrei a porta de forma fugaz e fui entrando. No começo um susto. Era um lugar onde jamais havia estado, um quarto não muito amplo mas grande o suficiente para que coubesse eu e tudo que vinha comigo. Não disse um oi, não perguntei como ia... a conversa fluiu como havia de ser. Em segundos passamos de estranhos para conhecidos, de conhecidos para muito conhecidos... Era estranhamente encantador como em apenas alguns minutos senti que nunca mais poderia sair daquele quarto se não a levasse comigo. Procurei um lugar para sentar. Não havia. Achei engraçado porque de onde eu vinha também não haviam duas cadeiras, nem duas camas, nem espaço para duas pessoas. Mas apesar deste quarto onde me encontrava ser tão pequeno e tão singular quanto o meu, sentia uma necessidade enorme de ficar lá. O máximo possível. De fechar os olhos alí mesmo, em pé e continuar ouvindo aquela voz tímida e ininterrupta balbuciando coisas que um estranho jamais ouviria. Sinto uma vertigem leve. Estou um pouco fora de mim, provavelmente dormindo ainda. Um sonho bom possivelmente. Bom sonho. Pensei em não acordar, na verdade ainda penso.
  Segui ouvindo, confesso que mais a voz em si do que as palavras que a mesma diziam. Sorria em momentos pontuais e continuava alí, olhando. Sentindo. Só depois de um bom tempo fui perceber que era involuntário. As palavras saíam, vinham e me agarravam, tiravam meu corpo de mim e passeavam com ele pelo quarto, rodopiavam por tudo que era meu, sambavam e riam e eu ria com elas e ria com você. Os nomes tomavam forma e dancei com Morrison, com Morrisey, com Tarantino, com Almodóvar... Dancei com todos eles enquanto você entoava uma canção que eu nunca tinha ouvido. Uma canção que me fazia rir pro lado de dentro, algo que eu nunca tinha experimentado antes, só na vida dos outros. E eu sentia que quando eu ria, algo dentro de mim ria também, como se meu corpo inteiro estivesse feliz em estar alí, como se cada parte de mim quisesse ter braços para poder te abraçar e uma voz para te agradecer por ser assim, tão linda.
  As pessoas na janela jamais entenderiam essa cena, como disse Nietzsche, e só agora fui entender "e os que dançavam, foram julgados loucos por aqueles incapazes de ouvir a música."
  E assim foi. Louco e ainda louco. Infelizmente nem todos os braços e abraços seriam possíveis para te segurar mais um pouco. Haviam compromissos. Fora daquele mundo em que me coloquei e te coloquei meio sem querer e fiquei imaginando se você tinha me colocado também meio sem querer e foi tudo meio que por querer porque queremos tanto a companhia um do outro, um pro outro...que todas as outras pessoas viraram meros coadjuvantes na existência. E você partiu, mas não exatamente. Eu sei que parte de mim ainda está naquele quarto sentindo parte de você, ansioso por outro encontro, por outra dança, por uma outra vez, e até quem sabe ...